Sobre: GTA IV
Resenha curta. Um pouco também sobre o que é representar uma cidade no digital
Eu lembro do meu primeiro contato com o conceito de cidade ter sido ruim. Meus pais me levaram pro brás numa certa odisseia às avessas na missão de comprar um brinquedo (bakugan, tava na moda na época) por um preço minimamente aceitável para um casal de primeira viagem que morava no jardim iguatemi no começo do século 21.
As minhas lembranças são quase que exclusivamente sensoriais. Consigo puxar um mar, e digo isso da forma mais literal possível, de pessoas e rostos que acabavam se misturando entre um e outros. Cansaço em pernas moles de uma criança de 8 anos sedentária que não estava acostumada a andar tanto assim e frases soltas de reclamação. Consigo lembrar de prédios que cresciam, diminuíram e cresciam de novo (não nessa mesma ordem) e finalmente na frase “por que a gente não usa o carro” seguida da resposta “aqui NÃO PASSA CARRO”. Na minha cabeça isso não foi uma boa experiência e segundos meus pais a intenção era exatamente essa.
Tem uma espécie de cinismo que cidades grandes (São Paulo´s, Rio de Janeiro´s, Salvador´s) fomentam que é meio geracional. Uma grande comunhão de “é essa merda mesmo” que passa de família pra família e, se não chegou em ti, vai chegar. E o jeito de “fugir” disso? Vaza pro lado ou sobe dentro dela. Meus pais conseguiram ser o primeiro caso, e minha pretensão continua nisso até morrer quentinho aos meus 60 anos numa cidade na Bahia depois de Feira de Santana.
Logo, o que me interessa em GTA IV é que ele consegue comunicar em microcosmo tudo o que eu ainda gosto em uma cidade, o que eu odeio e o que me faz parte dela.
Dan Houser, ex co-presidente da Rockstar e um dos principais escritores de quase todos os jogos pós GTA III da desenvolvedora, deu uma entrevista para a Vulture em 2008 falando sobre o processo de criação da Liberty City. Nela Houser fala sobre a indústria, a questão de violência na mídia. Mas o ponto focal é as influências no desenvolvimento do jogo e as intenções dele. Houser ilustra um jogo que tem vontade de capturar um imaginário metropolitano. As intenções não são de um fotorrealismo mas de uma espécie de “guia turístico digital” nas palavras do próprio. Em uma citação direta e traduzida de Houser para a revista, ele diz: “Nós queríamos um tipo de guia turístico espiritual que tivesse a sensação de Nova York, mas em uma escala exagerada. Nós queremos que você se sinta a estrela de seu próprio filme ou série de TV”
E essa filosofia se reverbera durante quase todo o jogo e é uma das razões que o mantém firme. Liberty City é uma cidade indiferente mas não desinteressante. Há um nível de cuidado em cada distrito nela que harmoniza com seu cinismo, seja nos complexos de habitação coletiva que fica à margem do centro da cidade, ou a região suburbana loteada de casas e sobrados. Ou até na direção dos carros que realmente varia entre os modelos e até mesmo na condição física deles. Com o peso e manobra dos veículos serem perceptíveis e até mesmo atritados
GTA IV possui essa força de gravidade que mantém seu discurso estético firme na medida que permite uma construção de caricatura no ambiente que quer representar. Um playground interativo com termos claros, que tornam fricções em explorações mecânicas e de interação entre jogador e ambiente.
O que, infelizmente, acaba tornando uma pena a forma que a coluna narrativa e de design do jogo acaba se desenvolvendo depois de um certo tempo.
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A narrativa de GTA IV não começa de uma forma bombástica como seu sucessor megalomaníaco ,GTA V, e pode-se argumentar que seu início é mais lento que seu antecessor, também proporcionalmente megalomaníaco, GTA San Andreas. A história abre com ex soldado e refugiado servio Niko Bellic chegando em Liberty City por meio de um navio cargueiro e sendo recepcionado pelo primo Roman.
Roman, que mentiu durante todo o tempo que trocava correspondência com o primo sobre sua vida nos Estados Unidos, acaba arranjando trabalhos para Niko dentro de sua frota falida de Táxis, até que as coisas ficam muitoooo loucas e radicais e nosso protagonista se vê imerso novamente em um mundo de crime e violência extrema e descobre (e repete em frases) diversas vezes como o sonho americano é uma farsa e cinismo é a única arma contra a realidade apática do mundo!
Falando assim pode parecer que eu odiei a história do jogo, mas não. Ódio é um sentimento que eu me reservo ao direito de ter com coisas extremamente pontuais, e uma delas já é um jogo da Rockstar (80% da campanha de GTA V) Minha questão com GTA IV não é nem o argumento proposto, mas a execução dele.
E o ponto de partida lógico, obviamente, é o nosso protagonista. Niko Bellic é um homem ruim, horrível na verdade, mas tem consciência disso. A espécie de anti-herói underdog subindo no mundo do crime é posta de lado em preferência de uma figura totalmente voltada à sobrevivência. O jogo faz questão de fazer Niko antagonizar qualquer personagem com ideias de grandiosidade e opulência com desdém. O único objetivo “claro” de Niko durante a história é uma vingança pessoal com um ex membro de pelotão, mas até isso o jogo deixa em segundo plano. As missões, em grande parte delas, surgem como uma necessidade de se manter dentro de uma cidade que não te quer nela.
E durante metade da campanha, boa parte desses serviços vem de pessoas que também são ativamente antagonizadas ou antagonizam outras por meio do ecossistema da cidade. Grande parte dos aliados e amigos de Niko também são imigrantes e/ou minorias que também tem uma história de desencanto com a cidade. É possível compreender um certo senso de comunidade que vem desses personagens e da forma que eles agem e o senso de urgência que eles têm.
Meu elenco favorito desses personagens, o qual eu acho que consegue ilustrar as maiores virtudes narrativas do jogo, é a família McReary. Os McReary 's são uma família irlandesa, que outrora já teve um passado criminoso afluente na cidade, em uma espiral decadente absolutamente cômica. Todas as missões envolvendo os personagens da família têm um sensação de amadorismo e desespero palpáveis, como se a ideia do serviço tivesse aparecido na hora e Niko só apareceu no momento errado. Seja fomentando rivalidade entre outras gangues ou fazendo queima de arquivo para o irmão McReary policial corrupto. Esse tipo de dinâmica casa perfeitamente com o que GTA IV se propõe a fazer narrativamente, um conto cínico e cômico de uma realidade caricaturada, mas realista dentro de seus termos. A troca de diálogos entre os irmãos varia entre acusações de alcoolismo e incompetência até saudades da IRA, e é absolutamente perfeito
O ponto alto da narrativa da família, e também o meu momento favorito do jogo, chega na missão Three Leaf Clover. A estrutura da missão segue um roubo a banco organizado pelos irmãos que acaba se tornando um conflito armado contra forças policiais no decorrer de TODO centro da cidade, começando em ruas de apartamentos, chegando em uma estação de metrô, passando pelo seus túneis e terminando em uma fuga de carro.
E acho que esse é o melhor momento para eu falar sobre o gunplay do jogo, que para mim é um dos grandes triunfos mecânicos dele. A quantidade de armas do jogo é extremamente baixa comparada até com seus predecessores, mas cada uma delas tem um senso distinto de peso, som e uso. A noção de gravidade que tange as mecânicas de direção complementam as mecânicas de tiro do jogo. Ouvir o som estourado de uma carabina enquanto se esconde atrás de parede (por meio de um sistema de cover primitivo no ponto certo) e escombros de carro, com receio de levar só alguns tiros pra perder o colete à prova de bala, e só mais alguns outros pra perder todo o progresso da missão e voltar ao zero acompanhado por mais 4 pessoas desesperadas com um delas gritando “this remind me of the Troubles” enquanto abre caminho centro da cidade adentro é um dos melhores momentos da franquia e um dos momentos altos da Rockstar como um todo.
Porque, de certa forma, é isso que ajuda né? Os McReary 's são um exemplo pontual e explícito, mas GTA IV, até nos seus momentos mais baixos, volta para essa ideia de comunidade e a importância dela num ambiente urbano. Cidades são feitas de gente, é uma ideia essencial na conceituação de uma. São pessoas, comunidades e afins que fazem a sobrecarga sensorial, emocional e física no cotidiano do coração do capitalismo tardio possível. Pessoas que se apoiam, ou até mesmo se sabotam, entre objetivos comuns. Às vezes na perspectiva de “chegar no topo”, e às vezes só na vontade de sobreviver, de conseguir atravessar a multidão, torres e postes de força com um objetivo claro de manter o ritmo das pessoas que formam essa multidão. É possível ver isso em Roman, Little Jacob e até mesmo em Niko. Liberty City, em seus melhores momentos, é um pastiche extravagante e perfeito das dinâmicas de uma cidade. Do cansaço à surpresa, até chegar ao lume de um sol se pondo entre prédios que um dia vão ser pequenos comparado aos outros que estão se erguendo, dirigindo um Civic velho e esperando a rádio tocar a música que você realmente queria ouvir, mesmo que você até esteja gostando da que ta tocando na hora.
Infelizmente, a última porção do jogo desaprende a trabalhar com essa ideia de cidade em detrimento de uma narrativa ruim e um level design que não sabe mais o que fazer com si mesmo.
Os problemas de execução, os quais eu comentei uns parágrafos pra cima, começam quando o jogo tenta fazer algo com a “história” de Niko, o qual eu comentei uns outros bons parágrafos pra cima. A subtrama de vingança já é manjada, mas o jogo se compromete ainda mais na medida que não sabe muito bem desenvolver ela fora de momentos que ele precisa de um objetivo narrativo “claro”. E em um jogo onde os melhores picos narrativos estão em momentos que ocorrem de causalidade à casualidade, essa vontade de travar um objetivo claro em cima de uma motivação mal construída serve em detrimento da obra.
O momento que essas peças finalmente se desabam chega no momento em que Niko finalmente encontra o homem que jurou vingança pela morte de seu pelotão, Florian Cravic.
A informação de onde Florian esta chega por meio de um dos personagens o qual Niko presta serviços (que faz parte do pior núcleo de personagens do jogo) e a missão que envolve ela na verdade é extremamente criativa e uma das minhas favoritas. O jogador tem que descobrir a localização de Florian por meio de um NPC, amigo dele, dando direções nervosas no banco de passageiro. Ela tem a harmonização perfeita entre cidade e design de missão, e, coincidentemente, é a última missão a qual eu realmente gostei (tirando momentos pontuais de umas ou outras)
Enfim, o desfecho da missão se dá pela revelação de que Florian não é o culpado pela morte do pelotão de Niko, na verdade ele é um homem gay que fugiu do pelotão para recomeçar sua vida na América e adotou o nome Bernie Crane. E agora, com a apresentação de Bernie na trama, talvez seja um bom momento para falar sobre as sensibilidades “politicas” do jogo e da desenvolvedora.
Em 2022 Jason Schreier, ex jornalista da Kotaku e alguém que todo mundo exige que você tenha uma opinião inflamatória sobre, publicou pela Bloomberg uma matéria referente a uma “reestruturação interna” na Rockstar Games frente ao anúncio (que ainda iria demorar 2 anos) de GTA VI. Uma dessas mudanças seria acabar com uma cultura de “grupo dos moleques” na desenvolvedora.
O resto do texto de Schreier trata sobre algumas das mudanças internas, mas não volta atrás na afirmação para tentar ilustrar essa imagem de “grupo dos moleques”. Logo, o que resta é teorizar o que é essa filosofia de “grupo de moleques”. E o meu palpite cai num lugar simples; Rafinha bastos no CQC falando que comeria a Wanessa Camargo e o bebe e Danilo Gentili chamando enfermeira amamentadora de vaca leiteira.
Humor “edgy” (como nos expoentes moribundos de uma geração já frustrada costumamos chamar de) é quase um teste de rorschach se você se propor a fazer essa abstração. Uma piada bosta, ou às vezes (raramente) engraçada e inflamatória pode falar sobre todo o corpo ideológico de uma pessoa, como também pode não dizer absolutamente nada, o que também é ideológico. É um exercício onde-se pisa um pé no satírico e outro no choque, e você pode muito bem tá querendo com isso abrir caminho para alguma conclusão discursiva, ou só ser alto e babaca mesmo.
E GTA IV cai nisso mais vezes no “alto e babaca” do que deveria ser permitido. O cinismo é suportável, e até mesmo integral para o que o jogo se propõe a fazer, mas as tentativas de trabalhar isso com humor são péssimas. São sacadinhas que sempre voltam para piadas de “olha como pessoas gays são CHATAS e INSUPORTÁVEIS mesmo que não tenha problema nenhum em elas existirem mas ainda são IRRITANTES” ou “olha só como imigrantes falam ENGRAÇADO” ou “os dois lados politicos são ruins” ou só abuso infantil mesmo!
Isso na verdade é um tema recorrente no jogo no qual eu não consigo ver exemplo em mais NENHUM jogo da franquia. Os comerciais das rádios de GTA IV tem algo tão forte com piada de abuso sexual de menores quanto um comediante desesperado em manter relevancia. E, eu escrevo isso com muita surpresa, nenhuma dessas piadas conseguem ser minimamente engraçadas. O único momento que o jogo leva esse assunto a sério é em um último encontro com Packie McReary, onde ele confessa para o Niko que o pai molestou ele e o irmão na infância. Seria um momento até que forte e corajoso da Rockstar, ainda mais pelo contexto desses dois homens Fodões TM ️ conseguirem se abrir um pro outro sobre algo tão corrosivo e íntimo. Porém, é difícil fazer essa consideração quando o tópico é tratado com mais enfoque em comerciais de pais querendo fuder as próprias filhas e professoras de primário predando seus alunos que precisam usar viagra para transar.
E o final lógico disso? A penúltima missão com Bernie (ou última, não sei) encerra um mini-arco onde o vilão principal do jogo tem provas de um relacionamento que Bernie tem com um candidato a prefeito de Liberty City, um conservador republicano, e pretende lançar elas a público como forma de fazer o mesmo perder a eleição. A minha gota d'água não foi exatamente o plot, mas sim o final da missão. Onde Niko Bellic, protagonista com poucos para zero escrúpulos morais, num jogo que passou metade da sua duração ironizando ou simplesmente matando homens gays, faz um monólogo para o Bernie sobre como é hipócrita a forma que o mesmo político que tem como campanha os “bons costumes” ter um affair com outro homem, e de que não há nada de errado em ser gay, e magistralmente terminando o discurso como “eu não sou de falar tanto, desculpa”
É uma mistura tão singela de vergonha-alheia sem o mínimo de pudor e senso comum que eu tive que pausar o jogo por alguns bons segundos para processar. É como se alguém que acabou de contar uma piada falasse que “era uma piada” quando viu que ninguém riu dela, ou se sentiu inclinado a explicar ela, na expectativa de que assim fosse fazer ficar engraçada. E GTA IV insiste em repetir a piada até que você ache graça.
Os problemas, entretanto, não se resumem só a esse humor “centrismo South Park Familia da Pesada”. A estrutura narrativa e de level design começam a se desmanchar à medida que o jogo não tem mais ideia do que fazer com a metade final dele. Grande parte das últimas missões do jogo são prestadas à família Pegorino, um grupo de mafiosos italianos tradicionais de Liberty City, que acabam entrando no meio da história nos moldes tradicionais que a narrativa segue (personagem x apresenta eles e etc) e estendem de mais a estadia nela. O fio dramático dos Pegorino´s é cansativo e prolixo. Em um jogo que sabia tão bem lidar com seu próprio pacing e com suas dinâmicas, ver o ritmo se arrastar a esse ponto é decepcionante. Na mesma entrevista concedida a Vulture, Houser gosta de ressaltar como os personagens de Liberty City são pautados em arquétipos do cotidiano de uma cidade grande, na intenção de traduzir eles para o jogo. Para a revista, ele comenta “Nós estamos tentando pegar personalidades fáceis de parodiar [...] nós estamos dizendo, esse é o cara que quer ser durão. Esse é o cara que quer ser um poeta. Esse é o cara bravo, mas que tá frequentando aulas de controle de raiva.”. E, mesmo que essa ideia, em parcela, fomente os piores pontos do jogo, ela ainda é responsável pelas melhores partes dele e por manter o pastiche de cidade operante.
Os Pegorino´s estão totalmente excluídos desse ethos. Suas falas, trejeitos e histórias têm menos haver com a sobrevivência e ironia cotidiana que a história do jogo cultivou, e mais em comum com uma tentativa torpe de imitar Os Sopranos. O que faz sentido já que a série tinha acabado só há um ano antes do lançamento do jogo, e uma história sobre o fim do mito da ideia de máfia italiana até faz sentido pro que GTA IV se propõem a fazer em partes (desilusão com sonho americano, afins) porém a diferença crucial é uma qualidade de escrita que Dan Houser e cia não tem.
E tal cansaço narrativo acaba se refletindo no level design também. Ambientes internos começam a se tornar lugar comum nessa reta final, e os confrontos armados não possuem a mesma sinergia de antes. São espaços que não conseguem sustentar e nem explorar as potencialidades do mapa como no início do jogo, se reservando a longas cadeias de inimigos em corredores apertados.
A conclusão dessa série de fadigas se dá nas missões finais da campanha. Niko finalmente consegue o homem que realmente vendeu seu pelotão, Darko Bervic, e acaba se deparando com alguém absolutamente mais quebrado e arrependido do que ele, alguém que na verdade pede para ser morto. Niko tem a escolha de dar cabo em sua vingança, ou a pedido do primo, abandonar essa ideia. São duas escolhas interessantes, menos pelas consequências e mais pela falta delas. Independente do que o jogador escolher, a conversa póstuma de Niko com Roman no carro ainda é marcada de arrependimento e sensação de vazio. O único arco pessoal do protagonista tem sua catarse negada em face a um ambiente apático. Liberty City não se importa com o passado de Niko, e também não vai ceder absolvição e resolução à uma cruzada solitária. É o momento que o jogo consegue retomar esse imaginário de cidade, mas agora explicitando o vácuo inerente de significado dela em narrativa, não repetindo em frases prontas mas ilustrando como intenções protuberantes se tornam ações fugais e inconsequentes em um espaço que não liga pra ti.
O que acaba nos trazendo para a derradeira última sequência de missões do jogo, onde Niko deve escolher entre trabalhar novamente para um inimigo jurado desde o começo do jogo ou fazer um acordo com o mesmo. É um momento em que o jogo pede pro jogador tirar alguma conclusão do seu tempo na cidade, uma espécie de reflexão da narrativa até então. Que, consequentemente, acaba na morte de uma das pessoas próximas à Niko independente da escolha
O gênio dessa decisão está na forma em que a consequência dela jamais é telegrafada explicitamente ao jogador. A antepenúltima missão envolvendo o plot de vingança de Niko dá um falso senso de finalidade para temática do jogo, uma forma de conclusão emocional lógica e honesta. “Vingança não vale a pena” e “não deixe seu passado tomar conta de você” são ideias pontuais que podem ser tiradas da missão com Darko e levadas como certeza na hora de escolher a conclusão da história. Uma conclusão que não reflete em absolutamente nada. Se Niko escolher se vingar, Katy, interesse amoroso e uma das únicas pessoas decentes na trama, é morta a tiros no casamento de Roman. Se Niko escolher fazer o acordo, o próprio Roman é morto a tiros no casamento.
A narrativa faz um esforço de passar a escolha do acordo e a morte do Roman como o “pior final”. Mas o final da morte da Katy ainda é lido como uma conclusão amarga também. Porém, é o final com a morte do Roman que consegue fazer mais sentido tematicamente pra mim. Niko Bellic é uma pessoa horrível e Liberty City é uma cidade indiferente. E em um jogo que desde suas primeiras horas faz de seu argumento central a ilusão do sonho americano e a impiedade da vida urbana, o final mais adequado para mim é o desse sonhador sendo morto no dia mais feliz de sua vida por problemas que não são dele. É um encerramento à uma narrativa que mesmo em seus altos e baixos, tem como questão explicitar uma única noção; esse lugar não quer você aqui, e sua estadia é um esforço de força bruta, não hospitalidade.
Em sua tese de mestrado "REPRESENTATIONS OF THE CITY IN VIDEO GAMES" de Bobby Schweizer, um artigo extremamente interessante e curioso o qual eu recomendo fortemente, há uma porção dedicada especialmente à GTA IV. Schweizer fala em sua tese que Liberty City foi a maior cidade usada para a sua pesquisa, como também as interessantes relações culturais que a cidade virtual tem com a cidade real de Nova York. Usando como exemplo a troca de nomes de bairros no jogo seguirem a lógica de nomeação da vida real, Manhattan vira Algonquin (ambas são palavras do léxico nativo-americano) e Queens se torna Dukes (as duas sendo convenções de nome da aristocracia inglesa)
Schweizer argumenta também como a criação da cidade se preocupa mais em suas intermitências sociais e culturais do que plenamente topográfica. É uma conceituação que volta para a ideia inicial de Hauser sobre a criação de um espaço virtual em forma de “guia turístico-espiritual”, e uma que eu concordo plenamente também
GTA IV é uma representação apelativa de um espaço inerentemente apelativo. De planos frustrados e conclusões inacabadas, traduzir sua complexidade em caricaturas é só um meio de ler sua totalidade em signos como uma forma (mesmo que frustrada em certos momentos) de fazer sentido desse universo. Fazer sentido da canseira de bater perna no bras ao 8 anos de idade e não entender como aqueles prédios conseguem se espremer entre si, de como seus planos de vida podem ser terminados em um único dia ruim e como todo mundo conhece todo mundo mesmo você morando entre 11 milhões de pessoas, e como esse “todo mundo” do seu todo mundo se apoia do jeito e da forma deles pra conseguir chegar mais um final de dia vivo. GTA IV é falho, mas seus maiores momentos são quando ele se entrega a essas questões, e a esse fluxo cultural-espiritual de o que é uma cidade no espaço virtual. Um microcosmo de um espaço sonhado de alguém que ama e odeia sua cidade na mesma intensidade.
Textos citados;
Representations of the city in video games: https://repository.gatech.edu/entities/publication/9529de9e-a75f-4254-a9c0-f06f95c1cccb
Rockstar Games’ Dan Houser on Grand Theft Auto IV and Digitally Degentrifying New York: https://www.vulture.com/2008/05/rockstar_games_dan_houser.html
Rockstar Games Cleaned Up Its Frat-Boy Culture — and Grand Theft Auto, Too: https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-07-27/gta-6-release-date-rockstar-cleans-up-image-after-employee-backlash